terça-feira

Naquele dia ele acordou cedo. Como de costume, ele acordou cedo. Um cigarro a mais no cinzeiro, uma ruga a mais no rosto. Uma lágrima a menos nos olhos...
Naquela manhã um suspiro o arrancou do sonho. Um salto o lançou no vácuo. Naquele espaço-residência do vazio... onde a existência não existe. No não lugar, sem referência pra se saber quando se está em pé, sentado, subindo, caindo ou de cabeça pra baixo. Decidiu não estar. Mas, pra isso não existia escolha. Ele estava. Estava ali parado sem perceber nem mesmo há quanto tempo olhava fixo sua sombra na parede gasta.

segunda-feira

bem vinda!

Bem Vindas!
Sejam bem recebidas, todas.Sintam-se a vontade! Todos nós diferentes. Todos. Sintamo-nos confortáveis para sermos e assim confrontarmos crenças. Vamos fazer do diálogo, uma construção coreográfica da verborragia. Sejam todos bem vindos! Todos nós que sentimos pulsando o desejo de nos desvelar. Todos nós que sem medo abrimos a guarda e deixamos expostas nossas mãos vazias. (vazias e ansiosas por um corpo que abraça). E contamos um segredo. Um pro outro deixamos escapar a nossa dor. E entre braços nos sentimos confortáveis pra chorar. Um choro baixinho. Um pranto silencioso em segredo nos nossos ouvidos. Braços cúmplices que ouvem acolhedores sem querer falar. Sem tapinhas nas costas ou olhares. Apenas escutam e abraçam.

Sorrio

Tento parecer um pouco simpático. Olho de um lado pro outro. Sempre! Da direita pra esquerda ou o contrario. Olho como se meus dois ombros contemplassem dois amigos. Um claro e conhecido. Outro não tão claro, mas este eu conheço bem. Sorrio. Converso. Tento absurdamente parecer natural. Solto pela boca palavras incoerentes. Claro, fazem todo o sentido. Sempre soube usá-las. Palavras que pareçam amigas. Que disfarcem o enorme constrangimento entre nós. Palavras capazes de velar um sentimento. Palavras capazes de velar. Meu amor por ti esta velado. Guardo-o dentro, junto ao meu peito. Sem acesso, a não ser nosso.
Dos olhos parados a lágrima escorre leve. Delicada e persistente vai abrindo espaço entre os pelos arrepiados do peito. Sutilmente convida a entrar. Carrega suave por dentro de um corpo que já não tenta se esconder. A cada lembrança parece que a queda d’água se intensifica. É preciso atravessar a cortina molhada pra flutuar entre as galerias de um passado que se foi. Num instante a felicidade cai reta pra fora das pálpebras, o rosto numa tentativa desesperada de não revelar a tempestade, sorri calmo. Procura por todos os lados dois braços onde se aconchegar. Vasculha todos os cantos atrás de um olhar sutil. Com ternura consegue se abraçar sozinho. E por maior que seja o esforço não consegue mais esconder nada. Entrega-se pra si. Desaba sobre os próprios soluços tentando respirar um pouco. Afoga-se entre suspiros, lágrimas, saudades e sorrisos. Sorri pro próprio joelho. Não sente medo de estar ali, não sente medo de sair dali, não sente nada. Só o que quer é dormir. Dormir um sono profundo. Acordar como se nada tivesse acontecido. Caminhar como se não tivesse passado. Esquecer que um dia conseguiu permanecer com os olhos parados em algum lugar sorrindo. E sorrir outra vez.

domingo

um dia

Saí de casa por volta das três da tarde. Comprar cigarros e uma carrapeta. O motivo era esse. Comprei os cigarros, encontrei amigos. Caminhei pelo Catete, Glória e Lapa. Comprei a carrapeta. Que erro! Encontrei a carrapeta. Que erro! Coloquei a carrapeta no bolso, ou devo dizer: - Beijei a boca do capeta! Um erro maior ainda. Cumprida minhas tarefas, sentei em um bar qualquer, um vazio qualquer por dentro me incomodava. Tinha os cabelos em desalinho. Usava terno e gravata. Barba feita, dentes brancos. Eu tinha uma boa aparência. Desses que dizem: - Esse é pra casar! Um vazio qualquer me possuía inteiro. Tentei o celular, num impulso de sanidade. Estava sem bateria. Relaxei, pedi uma cerveja. A mais gelada. O primeiro copo bebi num gole só. Assim fui até a quarta garrafa. Nessa hora o mundo ao redor do meu coração começou a girar. O mundo ao meu redor começou a girar. “O roda-mundo roda-gigante. Roda-moinho roda-pião. O tempo passou num instante nas voltas do meu coração”. Tocava Roda Viva em algum desses apartamentos tipo quartosala em cima do bar. Eu sentado, com a carrapeta em minha frente, no centro da mesa e o vazio voraz por dentro, me consumindo. “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar” a música do andar de cima continuava tocando. Segurei, com o polegar e o indicador, a parte mais fina da carrapeta e a fiz dançar, girar, girar, girar e girar. A regra do jogo era só uma. Pra onde o pião apontasse eu caminharia. E seguiria caminhando até chegar em um muro, uma esquina ou sei lá o que. Lá rodaria a peça outra vez. Rodei, apontou pro leste. Paguei a conta, levantei um pouco tonto e caminhei. Passei por um homem velho, sentado que vendia flores murchas. Comprei quatro. Passei por um casal que brigava. E em meio às voltas dos braços estendidos no ar gritavam: - Nunca mais quero te ver! Parei na esquina. Uma encruzilhada. Coloquei uma flor em cada ponta de cada rua e girei o pião. Continuei caminhando. Seguia sempre a indicação da carrapeta, caminhava sem saber pra onde. Estranhamente o vazio se transformava em ansiedade. Não conseguia mais parar o jogo. Em outra esquina, a seta apontou oito vezes para a porta entreaberta do prédio ao meu lado. Entrei devagar. Pedi um wiskhy. Sentei na mesa em frente ao palco. Ninguém, a não ser eu e o garçom que me servia. O globo espelhado no teto começou a girar. Reflexos por todos os lados. Nas paredes, no chão e em mim. Pedi outra dose. Uma cortina velha de veludo vermelho começou a abrir um pouco engasgada pela ferrugem da engrenagem. No palco, um homem sentado de frente pra mim, bebia wiskhy e fumava um cigarro atrás do outro sem dizer nenhuma palavra. Eu olhava ele nos olhos. Ele me olhava como se soubesse tudo o que tinha acontecido. Me olhava como se soubesse exatamente com quantos travestis eu tinha trepado. Aqueles olhos pareciam saber quantas garotas de doze anos eu tinha comido depois de passar pelo velho das flores. O vazio voltava a ser meu recheio. Agora eu tinha os cabelos em desalinho um pouco grudados neles mesmos. Usava terno. Barba por fazer. Os dentes não sei como continuavam brancos. A boca tinha um péssimo cheiro de podre. Duas luzes acenderam ao mesmo tempo em que tudo apagou. Uma no homem sentado no palco, outra em mim. Tirei o casaco junto com o homem. Enrolei as mangas da camisa e deixei a mostra os hematomas e as picadas, presente do dia em que a carrapeta me levou para uma rua sem saída. Fiquei um pouco incomodado, mas quando olhei pra frente, percebi que os braços do homem no palco eram iguais aos meus. Mais uma dose, e continuei olhando. O cigarro no cinzeiro lotado desenhava com a fumaça um labirinto de caminhos parecidos com os que eu tinha percorrido. Os olhos, isso eu percebi nos olhos do homem, estavam vermelhos e irritados. Ardiam! O outro coçava com o dorso da mão esquerda o olho do mesmo lado. Lembrei dos outros homens de terno e gravatas, pelo menos quarenta anos mais velhos que eu. Conheci-os por acaso, como todas as outras coisas, tudo naqueles últimos dias acontecia por acaso. Foi por uma das ruas que passei. Foi um aceno, um Olá! E eu sentei. Começamos a conversar.