segunda-feira

Muda

Bom eu...eu comecei a trabalhar com tradução ainda pequeno. Tive um colega no jardim de infância, o Ayrton. Eu ensinei ele a falar jipe. Todos os dias durante um ano eu gritei jipe no ouvido dele. É, eu gritei. E gritei porque ele era surdo. Ele aprendeu a falar jipe. E eu, eu digamos assim “peguei gosto por surdos”.
Depois do Ayrton tive muitos outros amigos surdos. É estranho como uma coisa não existe pra você, e depois que você ouve falar nela a primeira vez, ela toma conta da sua vida. Comigo foi assim. Depois do Ayrton, tudo virou surdo. Quase que eu fiquei surdo.
Teve a Paula também. A Paula morava perto da minha casa. E apesar de surda, me ligava todos os dias. Fiquei apavorado a primeira vez que ela telefonou. Já imaginou uma conversa telefônica com um surdo? Naquela época não existia celular, enviar mensagem, nada dessas coisas. Enfim. A Paula fazia fono quase todos os dias. Estava aprendendo a falar. O problema é que ela não ouvia quando eu falava. Mas, graças a deus não era isso. Ela queria que eu fosse pra janela, dava pra ver a janela dela da minha. Passávamos horas conversando na janela. E tudo que se dizia era em segredo. Era em silêncio.
O que gosto nos surdos é que eles não te ouvem falar, eles te veêm falando. E você também, você vê eles falando. Nessa época tive vontade de ter um filho surdo, com a Paula.
Você pode dizer o que quiser prum surdo. Ele nunca vai saber, a não ser que você esteja na frente dele, e de frente pra ele, falando tudo bem devagar e articulado. Ou usando as mãos.
Os surdos tem uma maneira engraçada de nomear as pessoas. O meu nome era um “F”na orelha direita, porque eu ouvia direito, a Dani, irmã da Paula era um “D”na testa, ela tinha batido de cabeça numa árvore. E a Paula, era um “P” na orelha esquerda, ela não ouvia. Eu e os outros, nossos outros amigos chamávamos ela de Pau-lá. Ela não gostava.
Hoje em dia trabalho com tradução em palestras. Geralmente de cegos pra surdos, ou de surdos pra cegos. E os assuntos giram em torno de viver ouvindo ou viver olhando. Quando o palestrante é cego, eu fico de costas pra ele e de frente pra platéia. Quando ele é surdo, eu fico de costas pra platéia. Esse meu trabalho me faz pensar em algumas coisas do tipo. Vocês já imaginaram como é viver sem ouvir nada? Como é dançar sentindo uma eterna vibração silenciosa? Ou ainda, construir formas, dar corpo as coisas sem ter nenhuma referência visual? Qual a eterna cor que um cego enxerga. Preto, branco, verde, azul. É sempre uma eterna mancha colorida ou sem cor, ou ela muda? A Paula era muda. Uma vez perguntei isso pra um palestrante cego. Qual a cor que você sempre vê/ Ele ficou mudo. Aí fudeu. Já pensou um cego mudo? As pessoas devem achar que ele é autista. Mas não, ele só é cego e mudo. E se for surdo também? Não, aí não dá. É melhor ser paralítico.
Tá, tudo bem to fugindo do assunto. Tem horas que eu fecho os olhos e fico tentando ouvir meu corpo, tentando inventar as formas que o corpo constrói no espaço. Noutras eu tampo os ouvidos e tento sentir a vibração das coisas, tento descobrir qual o som que faço vibrar de mim. É engraçado esse poder que o corpo tem de produzir vibrações, construir formas, moldar o espaço e reverberar tudo. Acho que um surdo é sempre mais bonito que um cego. Eu nunca vi um espelho na casa de um cego. É difícil tatear a imagem refletida, dar forma a ela.
Os cegos, os cegos acho que eles tem mais tato que os surdos. Eu tive um massagista cego. Até hoje não sei se ele me massageava ou me olhava. Os olhos deles são nas mãos, uma visão tátil. Acho que dá pra falar assim.
Tem uma coisa que me incomoda. Eu gosto de conversar olho no olho. Com qualquer pessoa. Com os cegos é difícil isso, eles não te olham no olho. Nem te olham. E com os surdos? Esses prestam atenção nas tuas mãos ou na tua boca. É estranho. Bom, enfim, acho que os surdos vivem sentido o mundo vibrar. E os cegos, tenho a impressão de estão sempre ouvindo Vinícius cantar. Essa é minha profissão, minha lida.... Tem dias que eu sou os olhos de alguns, noutros eu sou os ouvidos.

Um comentário:

  1. É uma linda percepção da palavra como forma de comunicação / interação social(2°parágrafo\1°e 2° período).

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